Lucas Lacerda
Em seus oito anos, a audiências de custódia no Brasil enfrentam desafios para a plena realização no país. O tema esteve no centro de uma disputa sobre a virtualização do Judiciário durante a pandemia, quando tribunais de Justiça pediram a regulamentação da audiência por videoconferência.
O formato presencial e o prazo de 24 horas para ocorrer, no entanto, foram ratificados em decisão recente do STF (Supremo Tribunal Federal).
Ainda há discussões sobre o formato, mas esse não é o único debate que envolve o dispositivo, criado para evitar prisões arbitrárias e garantir os direitos do detido.
As regras determinam que a pessoa presa deve ser levada à presença de um juiz em até 24 horas, acompanhada de advogado ou da Defensoria Pública. O magistrado avalia a legalidade do flagrante e da prisão, investiga eventuais maus-tratos ou tortura e define a necessidade ou não de medidas cautelares, como a própria manutenção da prisão e outras restrições antes de eventual condenação.
As audiências estão previstas em tratados como a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário desde 1992. Em 2015, o STF determinou a realização dos procedimentos ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347.
Quatro anos depois, o pacote anticrime incorporou as audiências no Código de Processo Penal. A obrigação também se estendeu a outros tipos de prisão para além do flagrante, como as temporárias e as preventivas (sem prazo).
Em 2015, a determinação das audiências pelo STF causou apreensão entre agentes do Ministério Público no país. “Pela impossibilidade de estarmos em todos os lugares e comarcas. Na Amazônia, por exemplo, temos fóruns distantes de barco um do outro para chegar ao juiz”, diz Manoel Murrieta, promotor penal e presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público.
Para ele, o instituto se consolidou no Brasil apesar das dificuldades e do receio que persiste em relação a propostas a fim de facilitar a sua realização. Murrieta diz que a videoconferência, criticada por não garantir a segurança dos presos e a verificação de maus-tratos, pode ser melhorada.
“Hoje temos câmeras 360º para resolver o problema de ponto cego [quando o juiz não consegue ver se há mais alguém na sala, por exemplo], e podemos garantir o isolamento do preso para segurança. O receio é um problema cultural, mas precisamos avançar.”
O presidente do IDDD (Instituto de Direito do Direito de Defesa), Guilherme Carnelós, diz que Executivo e Judiciário devem cumprir o formato presencial, que está na lei. “Em lugares que não faziam antes e que agora têm vídeo, é um avanço. Mas é um passo pequeno. Não é o acusado que tem que pagar pela falta de estrutura do Estado”, afirma.
O advogado diz que ainda é preciso explicar à sociedade o que é a audiência de custódia, para evitar o entendimento de que ela promove uma absolvição antecipada.
Nas audiências, o juiz analisa a necessidade de manutenção da prisão, que é uma medida cautelar, anterior ao julgamento. Para decidir se é adequado prender uma pessoa, o magistrado avalia, por exemplo, se há riscos para o processo, como possível ameaça a testemunhas.
Para Murrieta, do Conamp, a prisão antes da condenação definitiva deve ser uma exceção. Ainda assim, por erro no Judiciário, muitos mandados de prisão podem continuar ativos mesmo que não exista mais necessidade da medida.
“Acontece de uma decisão posterior da Justiça revogar a prisão, mas ficar o mandado pendurado e a pessoa ser presa ao procurar um serviço público, por exemplo. Antes das audiências, verificar esse erro levava meses”, explica Daniel Diamantaras, subcoordenador do Núcleo de audiências de custódia da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
O estado criou três centrais de audiências de custódia –na capital, em Volta Redonda (sul fluminense) e em Campos (noroeste). Hoje, afirma, Diamantaras, presos são apresentados ao juiz em até 48 horas.
A experiência no Brasil é considerada recente, mas, para o presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), Nelson Gustavo Mesquita Ribeiro Alves, um destaque positivo é desencarceramento para crimes de menor gravidade e a apuração de excessos nas prisões.
Ele cita dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que apontam a realização, de janeiro de 2015 até a última sexta (31), de 1,18 milhão de audiências de custódia no país. Desse total, 86,2 mil, cerca de 7,3%, receberam relatos de tortura. O magistrado também cita a concessão de liberdade provisória para 474,2 mil custodiados, e a conversão para prisão domiciliar em 2.892 casos.
Para o magistrado, a videoconferência pode ajudar a proteger o detento. “A questão do deslocamento deve ser analisada sob a ótica da integridade do próprio preso”, diz ele, sobre a ida e a volta do preso da unidade em que está detido até o local da audiência.
“Assim, para assegurar a integridade do custodiado, a realização por vídeo é a medida mais adequada”, afirma. Para isso, ele defende a autonomia do juiz para decidir sobre o formato da audiência –presencial ou remoto.
Um problema, para Murrieta, do Conamp, é que a confissão de um crime durante a audiência não pode ser usada como prova, o que exige um interrogatório posterior pelo Ministério Público.
O promotor critica ainda o fato de o órgão não poder, durante a audiência, sugerir acordos para mudar a pena ou conseguir a colaboração da pessoa presa em troca de não abrir o processo. “Se conseguíssemos aproveitar esse momento para propor acordos para situações corriqueiras, como estelionato simples ou furto qualificado, teríamos mais tempo para apurar crimes graves.”
Passo fundamental, segundo Carolina Diniz, coordenadora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, é garantir que relatos de tortura feitos na audiência sejam investigados.
“Muitos casos não viram inquérito policial. Há apenas uma apuração preliminar, muitas vezes feita pelos policiais envolvidos na prisão. As pessoas, com medo de represálias e porque sentem que nada acontece, deixam de denunciar.”
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