I. A clássica e a moderna
Existem duas democracias, uma que nós designamos como clássica, outra moderna. Desta distinção reivindiquei, há mais de vinte anos, não tanto a propriedade, pois as idéias são de quem as adota e ninguém é dono delas, mas a responsabilidade inicial. Essa distinção foi proposta em nossos escritos anteriores, mas queremos completar alguns pormenores e retificá-la aqui e ali.
A reflexão sobre esse tema tem nos acompanhado desde a mocidade, como também o tem a todos os da nossa geração que, se por um lado conheceram a democracia desde o berço, nunca a consideraram um fenômeno natural, um imperativo categórico, um fato definitivamente encerrado, mas antes como um estímulo incômodo ao pensamento político e à reação. Essa reflexão não ficou inerte, mas, desde o momento em que começamos a expô-la, as sucessivas modificações que sofreu não consistiram em variações doutrinais no tocante aos princípios, mas em desenvolvimentos mais ou menos empíricos quanto à sua formulação.
Clássica é a democracia que sempre ou quase sempre existiu, e que igualmente poderíamos chamar, num sentido relativo, de eterna: ela é um modo de designação dos governantes. A designação dos governantes pelos governados, segundo diversos sistemas eleitorais, é algo que figura em todas as épocas da histórica, com maior ou menor extensão. Variam os tempos e os lugares, e sempre se elegeram bispos, reis, magistrados, presidentes, ditadores. O número e a qualidade dos eleitores variavam, pois sempre existiram regimes “mistos”, combinando em proporções diversas o sistema democrático com o sistema aristocrático. Quando aparece sem mistura, a democracia clássica consiste em não haver nenhuma autoridade política na cidade cujo titular não seja, direta ou indiretamente, designado por um tempo limitado pelos cidadãos, que são os eleitores.
A democracia moderna funciona como a democracia clássica. Aparenta ser a mesma coisa, mas não é:
Em primeiro lugar, a escolha dos governantes pelos governos é tido como o único modo justo: sendo assim, os regimes não democráticos são tidos por imorais. Uma democracia assim não é mais um regime entre outros, que se pode preferir por razões de técnica, de oportunidade, de conveniência política, e que se pode consertar, limitar ou suprimir por razões da mesma ordem. Santo Agostinho ou Santo Tomás de Aquino, por exemplo, que só conheceram a democracia clássica, concebem facilmente a possibilidade de ela ser suprimida, e não vêem nisso qualquer problema de natureza moral:
“Agostinho dá o exemplo seguinte no seu Tratado do Livre Arbítrio (I, 6). Se um povo for moderado, sério e zeloso da utilidade comum, a lei é justamente feita para que a tal povo seja lícito estabelecer os seus magistrados, que administrem a república. Mas se esse povo se torna paulatinamente depravado, a ponto de tornar o seu sufrágio venal e entregar o governo a homens escandalosos e criminosos, é justo cassar-lhe o poder de distribuir as honras, e transferi-lo ao arbítrio de uns poucos bons.”
Algo assim é tido como moralmente absurdo e contraditório para a democracia moderna, que se apresenta como um direito imprescritível, que não se poderia abolir sem grave injustiça. A democracia clássica, ao contrário, era uma instituição revogável, que se estabelecia ou se suspendia conforme os tempos, os lugares e as circunstâncias.
Para a democracia moderna, a justiça política é definida pela democracia, e a injustiça, pela ausência de democracia.
Em segundo lugar, a designação dos governantes pelos governados é o único fundamento da legitimidade. Sobretudo, é essa a razão por detrás daquilo que se disse antes. “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação” e “a lei é a expressão da vontade geral”, estipula a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ato de nascimento da democracia moderna. Toda soberania, toda lei que invocar outro fundamento que não este, é tirânica. Nenhuma soberania, nenhuma lei, portanto, jamais poderá existir se não se fundar na vontade geral.
Assim, a democracia moderna pretende ser idêntica à democracia clássica, disfarça-se dela e recusa-se a distinguir-se dela — ela seria a verdadeira democracia. A designação dos governantes confunde-se com a sua legitimidade: a legitimidade funda-se na designação (democrática) e é uma só com ela.
Em terceiro lugar, a consequência: o poder democrático, na democracia moderna, se torna um poder ilimitado. Ele se torna assim de direito. Quando a legitimidade do poder tira todo o seu fundamento unicamente da designação de quem é chamado a exercê-lo, um tal poder é ilimitado de direito: quem ou o quê poderá limitá-lo? De fato, ele mantém certos limites, é contido pelos hábitos, pelas tradições, pelas realidades, pelas idéias contrárias, mas essas coisas são todas estranhas ao direito democrático (moderno), e tendem a ser suprimidas por uma contínua democratização da sociedade.
A sociedade é por natureza familiar, profissional, hierárquica. Na democracia moderna, o direito (novo) entra em conflito com a natureza: a democratização ilimitada é o progresso indefinido do direito, por uma evolução que desqualifica, desacredita e finalmente destrói as sociedades naturais.
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Que a “lei” seja a “expressão da vontade geral” e nada mais, é uma grande novidade na história do mundo. A proclamação de 1789 não inventou a democracia, ela lhe deu um outro conteúdo. Ela impôs na vida política uma nova moral e um novo direito.
Sempre, em todas as civilizações até 1789 (e mesmo depois, mas então por sobrevivência cada vez mais frágil, cada vez mais implícita), a lei era a expressão de uma realidade superior ao homem, de um bem objetivo, de um bem comum que o homem traduzia, interpretava, codificava livremente mas não arbitrariamente. O legislador fazia o que estava ao seu alcance, nem sempre o que devia fazer: mas a sua função reconhecida era a de formular os grandes imperativos que não estavam para ser inventados, mas descobertos ou recebidos, como Moisés no Monte Sinai. A lei era a expressão humana da vontade de Deus sobre os homens, conforme à natureza que lhes deu, ao destino que quis para eles. Mesmo quando Deus era desconhecido, ou não reconhecido, a lei ainda era a expressão de uma justiça, de uma razão, de uma ordem superior às vontades humanas:
“Os teus decretos, ó Creonte”, declara Antígona, “não têm força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém sabe desde quando vigoram!”
Assim, a legitimidade da lei, do poder e dos governantes residia na sua conformidade a essa ordem superior, e não numa designação regular dos magistrados e dos legisladores. Essa regularidade é uma legalidade que tem sua importância. Mas a legitimidade, isto é, a justiça, funda-se no bem comum, ou seja, no Decálogo ou, em outras palavras, em Deus. Os próprios pagãos, mesmo não possuindo um conhecimento muito claro, tinham ao menos um vivo sentimento disso. Foi uma dia terrível na história do mundo o dia em que os homens decidiram que, a partir de então, a lei seria “a expressão da vontade geral”, ou seja, a expressão da vontade dos homens; dia em que os homens decidiram dar-se a si mesmos a sua lei; data em que declinaram no plural o pecado original.
Pois, no singular, o pecado de Adão consistiu em querer ser para si mesmo a origem da própria lei, segundo a descrição clássica: “Deus sabe que, em qualquer dia que comerdes dele, se abrirão os vossos olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gn 3, 5). Santo Tomás comenta: “[O] primeiro homem pecou, principalmente, desejando assemelhar–se a Deus pela ciência do bem e do mal, à sugestão da serpente. De modo que, por virtude da própria natureza, determinasse para si o que fosse bom e mau no agir…”; “… a fim de que, como Deus, que pela luz da sua natureza rege a todas as coisas, o homem, pela luz da sua natureza, e sem o socorro de uma luz exterior, pudesse reger-se a si mesmo…”.
Pecado fundamental; revolta essencial pela qual o homem quer estabelecer para si mesmo a lei moral, pondo de lado a que recebeu de Deus. Em 1789, essa apostasia tornou-se coletiva. Ela se tornou o fundamento do direito político. A democracia moderna é a democracia clássica em estado de pecado mortal.
II. A natural e a totalitária
Que os legisladores ou os governantes sejam designados pelo conjunto dos cidadãos, que estes adotem ou rejeitem, por sufrágio direto ou por meio de representantes eleitos, as leis positivas, isso não está em questão neste nível, que é o da justiça e da moralidade: pode-se proceder de um jeito ou de outro; pode-se discutir a esse respeito e mesmo lutar por isso, em nome de todas as particularidades históricas, geográficas, circunstanciais. Mas, quando se procede assim, é preciso ter clara consciência dos poderes que se reconhecem ao corpo eleitoral:
— ou bem se lhe pede designar os homens ou aprovar as leis positivas que lhes pareçam mais conformes à vontade de Deus — seja Ele direta, implícita ou mesmo inconscientemente invocado na procura por uma conformidade ao bem comum objetivo e superior aos homens;
— ou bem se lhe pede escolher os homens ou editar as leis mais conformes à sua própria vontade declarada universalmente soberana, e única soberana legítima.
A aparência pode ser a mesma, e é por isso que se confundem as duas condutas. Mas a realidade é bem distinta, e mesmo oposta.
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Para passar da democracia clássica à democracia moderna, falou-se aos povos mais da aparência clássica do que da realidade moderna. Começou-se a lhes falar da democracia como se ela fosse apenas uma forma de governo mais evoluída, mais agradável ou mais digna que as outras. E ainda em nosso tempo, o dicionário Larousse define assim a democracia: “Forma de governo na qual o povo é considerado como exercendo a soberania”. Há uma nuance de ceticismo: “considerado como”. Mas não se trata apenas de exercer (mais ou menos) a “soberania”, ou a “autoridade suprema”, não se trata apenas do exercício do poder, mas do seu novo princípio. O artigo 3º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 diz: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação.” A democracia não é apenas uma forma de governo, mas a única; ela não é mais uma oportunidade, uma garantia, uma comodidade, uma concordância, objeto de uma preferência variável segundo os tempos, lugares e circunstâncias. O artigo 3º acrescenta: “Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer a autoridade se ela não emanar expressamente dela.” O que suprimia de direito até mesmo a autoridade paterna. Nós vivemos, cada vez mais de fato, nesse tipo de democracia; mas em nome da outra. Após essa doce definição de democracia, o Larousse apresenta um exemplo igualmente dulçoroso, um só: “a democracia ateniense”. Como se a Declaração dos Direitos de 1789 jamais tivesse existido, ou como se ela não tivesse mudado coisa alguma.
Nenhum progresso ocorreu na lexicografia mais recente. Segundo o Petit Larousse illustré, a democracia ainda é “o governo em que o povo exerce a soberania”. E segundo o Petit Robert, editado no mesmo ano: “doutrina política segundo a qual a soberania deve pertencer ao conjunto dos cidadãos; organização política (ordinariamente, a república) na qual os cidadãos exercem essa soberania.” Um e outro definem assim a “soberania” em questão: “autoridade suprema; qualidade do poder político de um Estado ou de um organismo que não está submetido ao controle de nenhum Estado ou organismo”; em direito constitucional, o “soberano” é a “pessoa física ou moral na qual reside a soberania”; em direito público francês, a “soberania nacional” é o “princípio segundo o qual a soberania outrora exercida pelo rei é atualmente exercida pelo povo, personificado na nação.” A verdadeira questão moderna é escamoteada.
Ninguém tem poder sobre o vocabulário. Se fosse possível, seria melhor usar dois nomes diferentes para cada uma das duas democracias. Poderíamos talvez chamar a primeira de “república” (mas isso não exclui uma monarquia à inglesa). É o que em suma fazia Aristóteles (politeia), empregando ordinariamente a palavra democratia no sentido pejorativo, como demagogia. O Larousse universal em dois volumes citado acima define a república como idêntica à democracia: “Estado no qual o povo exerce a sua soberania pelo intermédio de homens por ele eleitos para um certo tempo.”
Nossa terminologia, democracia clássica e democracia moderna, possui a vantagem da precisão científica. Ela possui o inconveniente psicológico de que o termo “clássico” soa anacrônico, sobretudo uma vez que as letras clássicas, a poesia clássica, as filosofias clássicas não são mais estudadas em classe, e são tidas como remanescentes de idades obscuras, de uma pré-história a ser deixada no esquecimento; enquanto isso, o termo “moderno” sugere progresso. O moderno, enquanto tal, prevalece espontaneamente sobre o clássico no espírito do público porque o homem tem sempre a tendência de crer no que vê, e ele vê que as máquinas e motores de hoje são mais avançados que os de anteontem. No entanto, não ocorre assim com as árvores: a mais nova, que mal foi plantada, não é a melhor, pois elas precisam crescer e, portanto, só são úteis quando antigas; é verdade que, após um certo ponto, elas envelhecem. O progresso indefinido não é contraditório nem necessariamente impossível no domínio das ciências da matéria e das suas aplicações mecânicas; mas ele o é no domínio da política, da moral, da vida (mesmo vegetal): os álamos não crescem até o céu e não há nada entre os seres vivos que cresça sempre mais e mais, salvo o cumprimento no tempo e para a eternidade do número dos eleitos de Deus. Nós não vivemos mais no meio das árvores, do seu movimento imóvel, da sua lição silenciosa. No que diz respeito aos motores, é o mais jovem e o mais novo, é o último a ser lançado que é o bom — salvo defeito de fabricação. Ninguém preferirá as mecânicas clássicas às mecânicas modernas; nem quererá trocar automóveis modernos pelos veículos de Luís XIV. “Democracia clássica” faz pensar em coisas velhas, em ruínas inúteis. “Democracia moderna” evoca invenção, progresso técnico, um espírito moderno e voltado para o futuro. Ressonâncias afetivas de vocábulos e influência do novo conformismo sociológico forjado pelas máquinas de fabricar opiniões. Os termos “clássico” e “moderno” possuem aqui a vantagem de serem referências históricas exatas: mas hoje a história, quando não foi esquecida, como ocorre normalmente, está completamente viciada. Será melhor falar, portanto, com o benefício de um maior rigor doutrinal, em democracia natural e democracia totalitária.
Totalitária? A democracia poderá ser totalitária? Blasfêmia! Horror! Sacrilégio! Nós vimos, nos fins do ano 1976, o general Pinochet, presidente do Chile, declarar numa entrevista à televisão colombiana que pretendia fundar em seu país uma “democracia autoritária”. Por acaso ou malícia, jornais como o Le Monde de 23 de dezembro imprimiram as manchetes: “democracia totalitária”, e os intelectuais debocharam em uníssono, dizendo que o general era decididamente um ignorante, um imbecil, e que lhes custava crer que ainda pudesse existir na superfície da terra, em pleno século XX, alguém tão retardado, tão desprovido de instrução laica e obrigatória, a ponto de ser capaz, o coitado, de falar em círculo quadrado, de submarino alado, e de não compreender que totalitarismo e democracia são coisas tão incompatíveis entre si quanto a água e o fogo, o branco e o preto, o sim e o não. A Rádio Vaticano distinguiu-se, tanto quanto o Le Monde, nesse tipo de divertimento. No entanto, eles mesmos têm o partido comunista por um partido democrático, gozando direito de existência legal em toda verdadeira democracia (enquanto que os partidos fascistas devem ser interditos), os mesmos por vezes confessam que esse partido ainda segue um pouco totalitário demais, mas não tem problema, falar em “democracia totalitária” é que é um absurdo.
Nós usaremos o termo democracia totalitária, pois entendemos que ela o é. O totalitarismo comunista não é uma anomalia no universo democrático, mas a sua conclusão lógica; a conclusão necessária; a conclusão inevitável se, para impedi-lo, não intervier algo a mais do que a política e a moral democráticas. Pois a democracia moderna traz consigo o totalitarismo como a semente carrega consigo a colheita. Ela é totalitária desde a origem, não necessariamente em todas as suas formas sucessivas: ela o é no seu princípio. Ela só se limita por uma declaração de direitos ditos “imprescritíveis”, mas proclamados por uma autoridade que pode perfeitamente mudá-los, decretar outros ou aboli-los. Ela já os mudou muitas vezes, bem como já decretou novos direitos “imprescritíveis”. Ela já os suspendeu ou os aboliu. Não são mais direitos. Não existe, na democracia moderna, nenhum direito que possa ser democraticamente garantido e mantido contra a vontade geral.
Essa realidade é mais ou menos velada pelo artifício da constituição. A “constituição” era inicialmente uma garantia contra arbitrariedades do príncipe. A monarquia mesma, sob condição de ser uma monarquia constitucional, poderia sobreviver nos tempos novos. A Declaração dos Direitos de 1789 diz em seu artigo 16: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação de poderes determinada, não possui uma constituição”. A garantia de direitos assegurada, mas por quem? Substitui-se uma liberdade tida como arbitrária, a do príncipe, por uma arbitrariedade tida como liberdade, a vontade geral. Não se conhecem mais os LIMITES definidos — e que são os únicos reais — que a ordem antiga impingia ao poder temporal do príncipe. Esses limites eram religiosos. Eram os da religião natural, do decálogo, da piedade filial e nacional, do respeito aos costumes, da franqueza e da palavra dada. Os da religião revelada, do poder espiritual da Igreja que educava a consciência religiosa da nação. Não era suficiente? Era frágil? Não se criou nada de mais sólido. Contra a arbitrariedade pessoal, estabeleceram-se garantias constitucionais que tiveram por conseqüência direta instituir a arbitrariedade coletiva, que não é menor, e pode ser pior, como é o caso mais freqüente, conforme notava Santo Tomás no capítulo quinto da primeira parte de De regno.
Uma vez que a garantia contra o rei se tornou “constitucional”, a constituição deveria ser hoje uma garantia contra a tirania da vontade geral: mas ela não quer sê-lo. Garantia contra os governantes, ela se apresenta, superiora a eles, como um conjunto de leis intangíveis. Sempre existe, nas nossas democracias ocidentais, alguma assembléia superior, alguma corte suprema tendo a função de proferir julgamento sobre a “constitucionalidade” das leis e decretos: pode-se apelar aí das decisões da assembléia legislativa e do governo, que são no entanto um e outro designados pela maioria soberana. Assim se restabelece a idéia de valores permanentes e superiores, de princípios, de direitos aos quais seja impossível tocar. Mas é assim só na aparência.
Essas regras constitucionais não podem ser ditas sagradas senão por uma analogia enganadora. Como as outras, foram fundadas apenas sobre a soberania popular: que pode corrigi-las, abrogá-las, substituí-las. A soberania popular, no direito democrático moderno, é uma soberania absoluta, onipotente, totalitária e ilimitada. Por complicado e inacessível que seja o modo de revisão das constituições, elas são perfeitamente revisáveis. Nossas democracias têm se orgulhado de garantir constitucionalmente a independência da justiça, o direito à propriedade privada e as liberdades fundamentais segundo a idéia que delas fazem. Mas essas garantias são meramente constitucionais. A vontade popular pode, amanhã ou depois de amanhã (como já calhou de ocorrer ontem ou ante-ontem), decretar que o justo é injusto, que o bem é o mal, proibir o que é lícito, tornar obrigatório o que é monstruoso e retocar nesse sentido até mesmo a constituição: contra a vontade popular não há nenhum recurso democraticamente legal ou legítimo. O importante, numa democracia moderna, não é que ela reconheça hoje esse ou aquele “direito do homem” codificados numa “declaração”: o importante é que ela possa, legitimamente, segundo a sua própria legitimidade, não os reconhecer amanhã. Todas as constituições, todas as declarações de direitos são revisáveis pela vontade superior da maioria que as decretou. O decálogo não é revisável, nem mesmo por Deus. Mas a democracia moderna não reconhece mais o decálogo: mesmo quando se conforma às suas estipulações práticas, ela pretende tirar de si mesma, e não dele, a fonte e a legitimidade da obrigação moral. A democracia moderna se pretende a única legisladora, e só respeita o decálogo na medida, e no sentido, e quando ela mesma o promulgou soberanamente.
Sed contra, protesta o catolicismo: Pio IX ensinava na Quanta Cura que é falso dizer que a vontade do povo, manifestada pela opinião pública ou por qualquer outro modo, constitua uma lei suprema, livre de todo direito divino ou humano. — Essa é a doutrina comum da Igreja, doutrina imutável e de alcance universal.
Quando os homens decidem que não há mais nada de superior à soberania popular e à lei do número, eles fazem bem mais do que mudar a constituição política: eles fazem uma revolução moral e religiosa, e não uma revolução qualquer, mas A revolução, a única, a da criatura que recusa, desde Adão, sua condição de dependência. No lugar dos deuses de Antígona, das Tábuas da Lei do Sinai, do Deus dos cristãos, só restou o homem, coletivamente emancipado, senhor de seu destino, único juízo do bem e do mal: dobrado sobre si mesmo e vazio; esmagado, alienado, apagado para desaparecer na noite sem fim do comunismo.
A democracia natural é política, pode ser boa ou má politicamente. Sistema de designação dos governantes pelos governados, ela não contradiz no seu princípio nenhuma das leis da criação e do Criador; sua adoção aponta para um julgamento circunstancial ou uma preferência sentimental. A democracia natural respeita o direito: a democracia totalitária arroga-se o poder de criá-lo.
A democracia moderna é religiosa: ela substitui as religiões pela religião do homem que coletivamente se faz deus. Sem reconhecer nenhum limite que lhe seja exterior, nenhum valor que lhe seja superior, nenhum outro direito que lhe possa resistir, ela suscita uma extensão indefinida do Estado totalitário e encontra no comunismo, ou seja, no domínio do partido comunista, a conclusão da sua lógica interna mais fundamental. Freada de fato pela existência de costumes e pensamentos cristãos, que ela só suporta provisoriamente, a título de excrescências condenáveis à luz da evolução dos espíritos e do progresso dos costumes, só ela pode em direito decidir sobre o bem e o mal, o justo e o injusto; só ela admite as liberdades e garantias que outorga e de bom-grado suspende. Ela proíbe até mesmo que o princípio democrático seja posto em questão: o adversário da democracia é um sacrílego a quem se subtrai, ao menos virtualmente, todo direito de cidadania; os Estados não democráticos são sempre ameaçados de serem banidos das nações. A Europa de 1977 aceitou que a Espanha estivesse na Europa, sob a condição de que a democratização espanhola realmente avançasse. No denominado mundo livre — que é apenas o mundo ainda livre do domínio comunista — a democracia mais plenamente moderna, a mais radicalmente laica, a mais separada de Deus, é sem dúvida a democracia francesa. As democracias anglo-saxãs, imperfeitamente laicas, são temperadas e limitadas por algum resquício de religião natural: e nessa medida, resistem melhor ao comunismo. No entanto, também elas estão ameaçadas. A lei do número é, como o Deus do Antigo Testamento, um deus ciumento, mas ela não o confessa facilmente; ela consente entrar no panteão, aceita um lugar humilde e discreto na assembléia das outras leis. Por natureza, contudo, ela não tolera nem superiores, nem pares, nem semelhantes. Ela não se apressa, dá tempo ao tempo até devorar tudo.
III. A liberal e a popular
É num sentido inteiramente distinto do nosso que se fala ordinariamente de duas democracias, segundo uma outra distinção: a democracia liberal e a democracia popular. Em 1941, tendo Hitler enviado suas tropas para se atolarem na Rússia, as democracias anglo-saxãs não se contentaram em conceder aos soviéticos uma significativa ajuda tecnológica e militar: elas fizeram com que a URSS ingressasse no “campo das democracias”, dando assim, no nível ideológico e moral, uma caução burguesa ao comunismo. Desde então se admitem duas formas de democracia, duas concepções democráticas — ambas próximas uma da outra, e dignas de se chamarem assim.
Na seqüência, durante os tempos da “guerra fria”, que era a guerra política do mundo dominado pelo comunismo contra o mundo ainda livre dessa dominação, cada uma das duas concepções pretendeu ser a única “democracia verdadeira”. No mundo não comunista, dizia-se que a democracia soviética, sem pluralidade de partidos concorrentes e sem eleições livres, era totalitária. No mundo comunista, respondia-se que a democracia capitalista, imperialista e colonialista, era uma falsa figura de democracia. Os liberais tornaram então a recusar ao comunismo a qualidade de democracia, assegurando, como François Mauriac o fez, que não se pode incarnar ao mesmo tempo a revolução marxista e o Estado democrático, pois a democracia repousa sobre os próprios princípios que a fé do partido comunista obriga derrubar e destruir, e que o partido comunista não pode crescer sem que a democracia diminua.
A tradição doutrinal do catolicismo opõe-se a essa distinção (duas formas diferentes de democracia, a liberal e a popular) e a esta exclusão (a democracia marxista não é a verdadeira democracia).
Pode-se tomar por testemunho Leão XIII na Encíclica Graves de communi de janeiro de 1901. Um parêntesis, foi essa a Encíclica que autorizava os católicos a usar o nome “democracia cristã”, com a condição expressa de não se dar a esse termo nenhum sentido político, mas apenas o significado de uma ação caridosa com respeito ao povo; as democracias cristãs receberam essa permissão sob condição murmurando: “o papa acaba de engolir a palavra, em breve engolirá a coisa”; nisso, a sua manobra seria bem sucedida, mas não imediatamente; primeiro tiveram de dobrar a cerviz sob o reino de São Pio X, em seguida lançar fora o pensamento e a herança do papa, acusando-os de “integrismo”.
Ora, em Graves de communi encontramos a seguinte advertência contra uma forma de democracia autenticamente democrática, assim definida:
“Desaparecendo as classes sociais e estando todos os cidadãos reduzidos ao mesmo nível de igualdade, isso seria o encaminhamento para a igualdade dos bens; o direito de propriedade seria abolido e todas as fortunas que pertencem aos particulares, os instrumentos mesmos de produção, seriam vistos como bens comuns.”
Quando Leão XIII nomeava um regime assim, chamava-o pelo seu nome: democracia social; ou seja, a aplicação às estruturas econômicas e sociais dos princípios mesmos que a democracia política aplica às estruturas políticas. Democracia social, democracia integral, verdadeira democracia — o marxismo-leninismo não está errado em reivindicar esse nome.
Reconhecer a identidade subjacente do princípio fundamental não é se recusar a perceber as grandes diferenças que se verificam entre a democracia liberal e a democracia marxista. Essas diferenças giram em torno das liberdades individuais: mas estas não pertencem à essência da democracia moderna e não são o critério para se avaliar se há mais ou menos democracia ou uma democracia mais verdadeira. Segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o direito novo, o direito democrático consiste em que a soberania reside doravante na nação (personificando o povo), e que nenhum corpo ou indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dele: a única diferença democrática (ou seja, a única que tem valor na perspectiva da democracia moderna) entre a democracia liberal e a democracia marxista é que, para a primeira, a lei majoritária do primado do número restringe-se ao funcionamento governamental e legislativo, enquanto que, para a segunda, toda a organização social é submetida a isso. Tanto para o marxista como para o liberal, a lei suprema é a mesma: o primado do número. Eles só se opõem sobre a extensão (ou a velocidade) da aplicação. Ambas estão de acordo com a filosofia política que Leão XIII descrevia nestes termos:
“Hoje em dia vê-se que foi além; um grande número dos nossos contemporâneos, seguindo as pegadas daqueles que no século passado deram a si mesmos o nome de filósofos, afirmam que todo poder vem do povo. Por conseguinte, aqueles que exercem o poder não o exercem como coisa própria, mas sim como mandatários ou emissários do povo; e por essa própria regra a vontade do povo pode a qualquer momento retirar de seus mandatários o poder que lhes foi delegado.” (Encíclica Diuturnum Illud, junho de 1881.)
A autoridade do pai de família, do professor na sua classe, do patrão na sua firma, do bispo na sua diocese são heterogêneas à luz do princípio democrático moderno, e contrárias à Declaração dos Direitos de 1789. Essas autoridades, que são liberdades, não podem ser mantidas senão limitando-se a expansão do princípio democrático. O que faz a democracia liberal não é tanto limitar, mas meramente frear essa expansão, enquanto gaba-se de salvaguardar o que seria democraticamente normal destruir. Essas autoridades, essas liberdades, fundadas na ordem natural anterior à democracia, a democracia liberal as abala aos poucos, ela as dissolve lentamente, as diminui sem cessar. A diferença é de grau, não de natureza, com a democracia marxista, que as suprime ou as subjuga.
Existe uma democracia mais lógica que a outra: a que remete ao poder da vontade popular não apenas a composição do governo e da assembléia legislativa, mas ainda os bens, as pessoas, a educação, a cultura, os trabalhos, as informações, confiando tudo ao novo deus como o homem na cristandade confiava tudo a Deus.
Existe também uma democracia menos lógica: a que, tendo admitido que todo poder e todo direito vêm da vontade popular, deixa sobreviver na sociedade direitos e poderes que não vêm dessa vontade; a democracia liberal é por vezes dita ocidental, e a outra oriental, como se Robespierre tivesse nascido numa aldeia do Cáucaso e a Convenção de 1793 tivesse se dado em Moscou.
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Objeta-se que a democracia soviética é, na realidade, uma mentira; uma hipocrisia; ela invoca a lei do número na teoria, mas a contradiz na prática; ela fala em nome da vontade popular, mas obedece às vontades de um tirano rodeado de pretorianos que, com o nome de “partido”, constituem uma casta privilegiada de políticos e policiais.
A objeção confunde os pontos de vista. Se nos dizem que existem dois conceitos fundamentalmente diferentes de democracia, a soviética e a ocidental, nós examinamos esses conceitos em si mesmos, e verificamos que ambos estão de acordo no fundamental, que é situar a vontade popular como fonte de toda legitimidade; uma levou esse conceito até as suas últimas conseqüências; o outro não se joga no despenhadeiro por considerações que não possuem fundamento democrático.
Falar da maneira com que essas concepções são executadas é levantar outra questão. Elas se chocam com a realidade que tanto mais lhes resiste quanto mais utópicas se mostram. A teoria democrática pressupõe a igualdade: a lei do número seria intrinsecamente contraditória se os cidadãos, todos contados por uma unidade, não fossem tidos por tão iguais quanto possível. Ao mesmo tempo, o impulso mais potente que as revoluções democráticas utilizam é a aspiração à igualdade, exacerbada e manipulada. Há muito se sabe que a igualdade social entre os homens é uma quimera: jamais foi realizada, nem na democracia ateniense nem na república romana; nem durante a revolução de 1793; não foi realizada nem no país dos soviéticos nem nas Américas. Por maior que seja o esforço feito pelos governos, pela legislação ou pela ideologia no poder, as desigualdades sempre renascem entre homens e mulheres, pais e filhos, ricos e pobres, proprietários ou não, patrões e empregados, artistas e assalariados, trabalhadores e camponeses, mestres e aprendizes, clero e leigos. Não é nem mesmo certo que os partidários da igualdade a tenham realmente desejado: o sentimento que os tem animado ao longo da história é antes o desejo de suprimir uma superioridade que os desfavorece (ou que parece desfavorecê-los); há muito de inveja na sua suposta justiça e nas suas proclamações de amor. A aspiração democrática à igualdade é sobretudo o ódio das superioridades que temos de suportar. Os aristocratas que renunciam espontaneamente aos seus privilégios e se tornam revolucionários, normalmente o fazem para suplantar os seus pares ou porque foram rejeitados por eles. Mirabeau e Barras, que eram nobres, elegeram-se em 1789 como deputados do terceiro estado porque a sua ordem não os havia designado; eles apoiaram a abolição dos antigos privilégios dos quais estavam sendo privados, mas nenhum escrúpulo os impediu de se atribuírem novos privilégios na sociedade revolucionária. De resto, diga-se o que se quiser do desejo de igualdade da parte dos democratas, o projeto de uma sociedade igualitária contradiz a inclinação natural dos homens e das coisas. Por mais que se tente, por mais que se esforce, para o estabelecimento da igualdade sempre foi preciso usar da mais terrível coação. De Robespierre a Lênin, os partidários da igualdade foram os tiranos mais implacáveis, porque a igualdade pode, numa certa medida, ser imposta às sociedades humanas pela força, mas nunca pela persuasão, e menos ainda por uma evolução natural.
Os fanáticos da lei do número são inevitavelmente inclinados a promover uma repressão universal para levar os homens ao estado de nivelamento em que a lei do número poderia funcionar logicamente. Uma tirania desse gênero só pode ser exercida com sua coorte de funcionários e políciais, de oligarcas e privilegiados; mas ela está a serviço do ideal igualitário. Nem Robespierre nem Lênin foram infiéis à lei do número nisso; antes, são fanáticos dela, fazendo tudo o que está em seu alcance para a impor, mesmo quando o número não quer; e essa coação, essa tirania, tiveram por estandarte a Liberdade, ficando subentendido que não há liberdades contra a Liberdade; e que a Liberdade em maiúsculas consiste, para a humanidade, numa recusa coletiva de toda dependência moral no tocante ao que quer que seja de moralmente superior à sua autonomia.
A ideologia liberal se limita a uma igualdade limitada, que é a de colocar o voto na urna eleitoral em toda liberdade e em segredo absoluto. Ela protesta que essa igualdade, restrita mas específica, e que essa liberdade não existem nos regimes comunistas. As “democracias populares” pretendem ser regimes eletivos: está claro que o “funcionamento normal” da democracia eletiva está falseado aqui pela onipotência do partido único. Sem dúvida. E mesmo bem mais do que os liberais imaginam ordinariamente, como escrevi no livro La vieillesse du monde. Mas, nas democracias ocidentais, esse funcionamento normal foi por muito tempo falsificado pela plutocracia, ou seja, pela prepotência do dinheiro, antes de alcançarmos os processos atuais de socialização, nos quais os mais ricos se arranjam e continuam sendo os mais bem posicionados. A democracia soviética é a abominável ditadura do partido, a democracia liberal é a abominável dominação da riqueza anônima e vagabunda.
Essas duas abominações não possuem o mesmo peso. Para qualquer um, mesmo para os apparatchiks do partido comunista, é inequivocamente preferível viver numa democracia liberal que numa democracia marxista. Mas não é assim porque a primeira seria mais democrática ou a única verdadeira democracia. A sua superioridade sobre a segunda vem de realidades estrangeiras ao dogma democrático: ela deixa sobreviver, ainda que cada vez menos, valores, usos, direitos, princípios realmente bons, amigos do homem, apesar de suspeitos para um verdadeiro democrata, pois tiram a sua origem e seus fundamentos em outro lugar do que no princípio democrático — no decálogo e na revelação católica.
( Les deux democraties, N.E.L., Paris, 1977. / Tradução: Permanência / Revista Permanência 296